sábado, 17 de julho de 2010

Relatório do Comissário da ONU sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias, Philip Alston


O representante da ONU foi recebido pelo comandante do Batalhão de Olaria com uma réplica do "caveirão" (foto do site do Globo -http://www.globo.com)

14 de Maio de 2008


(tradução não oficial pelo NEV/USP, pois o português não e língua oficial da ONU)
1. Visitei o Brasil entre 4 e 14 de novembro de 2007 para investigar o fenômeno das execuções extra-judiciais. Infelizmente, muitos dos tipos de mortes que investiguei em 2007, continuaram a ocorrer em 2008. Um aspecto sobre o qual me detive foram as mortes pela polícia durante operações policiais de larga escala nas favelas do Rio de Janeiro. Conforme indico mais adiante, ainda que a operação de junho de 2007 na região do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, tenha resultado na morte de 19 pessoas, as autoridades do governo do estado a consideraram como um modelo para ações futuras.
Parece que, de fato, a operação se tornou tal modelo: em 30 de janeiro de 2008, seis pessoas foram mortas pela polícia em uma grande operação; em 03 de abril, 11 foram mortos; em 15 de abril, 14 foram mortos. Depois da última operação, um alto oficial da polícia comparou os homens mortos a insetos, referindo-se à polícia como “melhor inseticida social”. Estes recentes eventos destacam a continuidade e a urgente necessidade de reformas das abordagens policiais e do sistema de justiça criminal.
2. Durante minha vista em 2007, eu me encontrei com vários membros de todos os escalões do governo. Também me encontrei com vários importantes representantes da área dos direitos humanos do governo e com a equipe das Nações Unidas no país. Eu recebi detalhados relatos de representantes da sociedade civil, vítimas, testemunhas e famílias de pessoas executadas. Visitei uma prisão em São Paulo, uma delegacia da Polícia Civil e um batalhão no Rio de Janeiro, uma favela no Rio de Janeiro e um assentamento em Pernambuco. Sou muito grato ao governo federal e aos governos dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco pela total cooperação a mim concedida.
3. Reconheço que minha visita aconteceu dentro de um contexto de ampla preocupação da comunidade em relação à violência criminal. As cidades brasileiras enfrentam enormes desafios para garantir a seus habitantes a segurança contra violência de traficantes de drogas, armas e outras ações do crime organizado. É preciso enfatizar que a legislação de direitos humanos não apenas proíbe os governos de cometerem execuções extrajudiciais, mas também os obriga a proteger os cidadãos dos assassinos. De fato, um dos eixos centrais do conceito de direitos humanos sempre foi, não apenas o direito à vida, mas a uma vida sem medo. A segurança humana não esta em competição com os direitos humanos, mas é parte deles. No contexto brasileiro, em particular, minha investigação mostra que acabar com os abusos aos direitos humanos e assegurar uma efetiva prevenção do crime por parte da polícia estão intimamente relacionados. A principal razão da ineficácia da polícia na proteção dos cidadãos contra o crime organizado é que, com muita freqüência, a própria polícia age com violência em excesso e contraproducente e participa no crime organizado quando fora de serviço.
II PREOCUPAÇÕES FUNDAMENTAIS
5. Entre os maiores problemas identificados, está a alta taxa de homicídios, bem como o alto grau de impunidade. Homicídios são a principal causa de morte de pessoas com idade entre 15 e 44 anos. Já há algum tempo, entre 45 mil e 45 mil homicídios são cometidos por ano no Brasil. Apesar de essas mortes terem disseminado medo e insegurança entre a população geral, notavelmente, pouco é feito para investigar, processar e condenar os culpados na vasta maioria desses casos. No Rio de Janeiro e em São Paulo, apenas 10% dos homicídios, aproximadamente, são levados a julgamento; em Pernambuco, esse número é de aproximadamente 3%. Dos 10% dos casos julgados em São Paulo, aproximadamente 50% levam a condenação.
6. Homicídios perpetrados por grupos de vigilância, esquadrões da morte e grupos de extermínio e milícias são outra grande preocupação. Em Pernambuco, uma confiável estimativa aponta que 70% de todos os homicídios são cometidos por esquadrões da morte. A atividade do esquadrão da morte geralmente consiste de policias, fora de horário, envolvidos em (a) mortes por encomenda; (b) extorquir dinheiro da população, geralmente sob ameaça de morte; e (c) assassinatos ou ameaças de assassinatos em nome de proprietários de terra contra trabalhadores sem terra ou indígenas em situação de conflito agrário.
7. Outro grande problema são as mortes nas prisões. Em Pernambuco, 61 mortes em prisões foram relatadas nos primeiros 10 meses de 2007. Por todo Brasil, assassinatos nas prisões incluem (a) presos matando presos; (b) agentes de segurança matando presos; e (c) presos matando agentes. Esta questão é discutida abaixo.
8. A policia no Brasil opera claramente correndo grande risco de vida na maior parte das situações. O número de policiais mortos é totalmente inaceitável e todas as medidas legais apropriadas precisam ser adotadas para prevenir tais mortes. Há, contudo, uma necessidade de observar estes números com cuidado. Em 2006, no Rio de Janeiro, 146 policias foram mortos, mas apenas 29 deles foram mortos em serviço. Uma grande proporção daqueles 117 mortos fora de serviço, provavelmente estava envolvida em atividades ilegais quando assassinados.
9. Um outro grande problema que se coloca são os assassinatos perpetrados pela polícia. Essas mortes podem ser separadas em duas categorias: (a) execuções extrajudiciais cometidas por policias em serviço; (b) execuções extrajudiciais cometidas por policias fora de serviço. Cada uma destas categorias é discutida em detalhes abaixo.
A. EXECUÇÕES EXTRAJUDICIAIS COMETIDAS EM SERVIÇO
10. Na maioria dos casos, assassinatos cometidos por policiais em serviço são registrados como “atos de resistência” ou casos de “resistência seguida de morte”. Em 2007, no Rio de Janeiro, a polícia registrou 1.330 mortes por atos de resistência. Isto corresponde a 18 % do total de assassinatos no Rio de Janeiro. Em tese, essas são casos em que a policia teve de usar a força necessária e proporcional à resistência daquele que os agentes da lei desconfiavam ser criminosos. Na prática, o quadro é radicalmente diferente. É o próprio policial quem primeiramente define se ocorreu uma execução extrajudicial ou uma morte legal. Apenas raramente, essas auto-classificações são investigadas com seriedade pela polícia civil. Recebi muitas alegações altamente críveis de que as mortes especificadas como “resistência” eram, de fato, execuções extra-judiciais. Essas alegações são reforçadas pelo estudo de autópsias e pelo fato de que a proporção entre civis e policiais mortos é inacreditavelmente alta.
11. Este e outros problemas são bem ilustrados pela operação de larga escala realizadas no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, em 27 de junho de 2007, que resultou na morte de 19 pessoas. Os responsáveis pela direção da operação e pela investigação das mortes não me forneceram nenhuma evidência de que qualquer investigação substancial tenha sido realizada. Por outro lado, alegaram que quase todos os mortos tinham ficha criminal. Este fato não podia ser de conhecimento dos policiais quando mataram aquelas pessoas, e foram firmemente negados nos depoimentos feitos pelas famílias das vítimas, incluindo aquela de um garoto de 14 anos. Ainda que cada vítima tivesse um ficha criminal, a resposta apropriada era a prisão e não a execução.
12. Perguntei ao chefe da Polícia Civil Rio de Janeiro sobre as revelações de uma autópsia independente que sugeria incisivamente que algumas daquelas pessoas haviam sido executadas extra-judicialmente pela policia. Ele não foi capaz de dar uma resposta cientificamente crível em relação a autópsia.
13. Como assinalado acima, muitos oficiais do estado no Rio de Janeiro consideraram a operação no Complexo do Alemão um modelo para ações futuras. O resultados da operação são, de fato, dignos de nota. Os mais importantes traficantes de drogas não foram presos ou mortos, e poucas armas e drogas foram apreendidas. Nenhum policial foi morto e poucos foram feridos, mas parece que a resistência encontrada causou a morte de 19 pessoas.
14. Até que ponto a operação no Complexo do Alemão reflete a principal estratégia do governo do estado, politicamente motivada e respondendo às pesquisas de opinião. Essa política é popular entre aqueles que querem resultados rápidos e demonstração de força. A ironia, é que ela é contraproducente. Muitos oficiais de policia graduados, com quem falei, foram altamente críticos à “abordagem de guerra”. As forças da polícia militar envolvidas tiveram pouco treinamento no uso de armas não letais, não houve tentativa de desenvolver policiamento comunitário nesta área, e quase nenhum serviço assistência social são oferecidos pelo estado paras as pessoas da comunidade afetada.
B. EXECUÇÕES EXTRA-JUCUIAIS COMETIDAS POR POLICIAIS FORA DE SERVIÇO
15. A polícia do estado, em especial a polícia militar do estado, freqüentemente tem um segundo trabalho quando fora de serviço. Alguns formam esquadrões da morte ou milícias que se envolvem na violência, incluindo execuções extrajudiciais que ocorrem por muitas razões. Primeiro, sua desonesta proteção, em que comerciantes e outros são coagidos a dar dinheiro ao grupo, são reforçadas violentamente. Segundo, para impedir que outros grupos minem o seu controle, pessoas suspeitas de colaborar com o crime organizado são mortas. Terceiro: embora esses grupos geralmente não comecem como esquadrões da morte, a relacionamento ilícito que eles desenvolvem com as pessoas mais poderosas da comunidade, freqüentemente resultam no envolvimento em assassinatos por encomenda.
C. VIOLÊNCIA NA PRISÃO
16. A freqüência de rebeliões e mortes nas prisões é resultado de uma série de fatores. A superlotação nas prisões contribui para a agitação dos internos e para a incapacidade dos guardas em efetivamente prevenir que armas e aparelhos de telefone celular sejam trazidos para dentro das prisões. Baixo nível educação e as poucas oportunidades de trabalho também contribuem para as agitações, assim como as falhas em assegurar ao preso sua transferência do regime fechado para o regime aberto quando possuem condições de receber esse direito. Atrasos no processo de transferência combinados à violência dos agentes e as precárias condições, encorajam o crescimento de grupos criminosos na prisão, o que pode justificar sua existência para a massa da população carcerária ao alegar agirem em nome dos presos para obter benefícios e prevenir a violência.
17. Há vários órgãos com poder de investigar as condições nas prisões, mas nenhum delas o faz adequadamente. A falta de uma supervisão externa permite que as condições precárias e os abusos continuem. Em alguns lugares os presos são obrigados a aderir a uma das facções criminosas facilitando o crescimento da identificação com os grupos e das atividades a ele relacionadas. Ao mesmo tempo em que o engajamento com uma das facções do sistema prisional sejam inevitáveis no curto prazo, essa situação contribui para o crescimento das facções e eleva as taxas de criminalidade de uma forma mais geral.
D. RESPOSTA DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL PARA EXECUÇÕES EXTRA-JUDICIAIS
18. É necessária uma reforma para enfrentar o problema das execuções extra-judiciais cometidas pela polícia e mudar as estratégias e culturas dos policiais. Outra abordagem igualmente importante é assegurar que, quando uma execução extra-judicial ocorrer, os policiais envolvidos sejam condenados e presos, as vítimas obtenham justiça e o culpado não possa matar novamente. É por isso inquietante que tão poucos homicídios resultem em condenações. Uma condenação bem sucedida para o assassino é o resultado final de um processo manejado por diversas instituições: a Polícia Civil, a Polícia Técnica Científica, o Ministério Público e o poder judiciário. Se qualquer dessas instituições falha, o processo todo falha. A má notícia é que uma ou mais dessas instituições geralmente falha.
19. A boa notícia é que todas essas instituições contam com um número significativo de pessoas competentes e que algumas das instituições geralmente funcionam bastante bem. Por exemplo, fiquei especialmente impressionado com o profissionalismo e a dedicação do Ministério Público. Similarmente, ainda que os programas de proteção à testemunha sofram tanto com cortes de recursos e problemas institucionais, eles conseguem, efetivamente, proteger um grande número de testemunhas.
20. No meu relatório final, farei diversas recomendações específicas a respeito de como o sistema de justiça criminal deve ser reformado. Como uma observação preliminar no entanto, eu diria que, ainda que o sistema de justiça criminal esteja precisando desesperadamente de uma reforma em larga escala, tal reforma é completamente exeqüível. A sociedade brasileira deve ter compreensão da grande urgência de fazer essas reformas, mas também deveria se sentir confiante que se isso for feito com urgência, ela será bem sucedida.
III. CONCLUSÕES PRELIMINARES E RECOMENDAÇÕES
21. Meu relatório irá incluir recomendações detalhadas para os governos federal e estadual para reformarem as abordagens policiais e o funcionamento do sistema judiciário. Esses apontamentos preliminares põem em evidência algumas das principais recomendações:
(a) Salários da polícia. Baixos salários para os policiais levam à falta de orgulho profissional e encorajam o envolvimento em corrupção, à adesão a um segundo trabalho e à formação de esquadrão da morte e outros grupos para complementar o salário. As reformas devem incluir salários mais altos;
(b) Investigação das mortes cometidas por policiais. A Polícia Civil e os serviços internos da polícia devem efetivamente investigar as mortes causadas pelos policiais. Em muitos estados, o sistema corrente de classificar imediatamente as mortes causadas pela polícia como “ato de resistência” ou “atos de resistência seguida de morte” é completamente inaceitável. Cada morte é um assassinato em potencial e deve ser investigado como tal;
(c) Forense. A Polícia e instituições forenses devem ter melhores recursos e prover maior independência;
(d) Proteção à testemunha. Testemunhas de execuções extrajudiciais cometidas por policiais e pelo crime organizado temem legitimamente represálias ao testemunhar. Este medo cresce quando o policial permanece em serviço durante as investigações. Há muito de impressionante sobre os atuais programas de proteção à testemunha, mas suas inadequações devem também ser francamente reconhecidas e urgentemente enfrentadas.
(e) Ouvidoria. Nos estados que visitei, a ouvidoria de policia falha em sua verdadeira independência ou na habilidade de juntar provas por si própria. Isso deve ser mudado: a polícia requer uma genuína supervisão externa, tanto quanto interna.
(f) Procuradores públicos: O Ministério Público é um órgão dedicado e profissional. Ele deve ter um papel chave para iniciar a investigação de cada incidente envolvendo morte causada pela polícia.
(g) Monitoramento das prisões: As muitas instituições destinadas à monitora as condições da prisão, mais destacadamente, juizes de execução penal, são incapazes ou falham em exercer esta função de forma adequada. O número destes juízes deve ser aumentado, e a forma como trabalham deve ser substancialmente melhorada.
(h) Administração das prisões: As prisões devem ser administradas pelos guardas e não pelos presos. No Rio de Janeiro, a prática de forçar novos presos, que nunca pertenceram a nenhuma facção a entrar no sistema é cruel e causo aumento destes grupos.
22. O povo brasileiro não lutou bravamente contra 20 anos de ditadura e nem adotou uma Constituição dedicada a restaurar o respeito aos direitos humanos unicamente para fazer o Brasil livre para que policiais matem impunemente em nome da segurança. É imperativo que os Governos Federal e estadual sustentem reformas nas direções que indiquei para fortalecer a segurança dos cidadãos comuns e promover o respeito aos direitos humano.