RELATOR | : | DESEMBARGADOR FEDERAL REIS FRIEDE |
APELANTE | : | UNIAO FEDERAL |
APELADO | : | NOEL LUIZ FERREIRA E CONJUGE |
ADVOGADO | : | JOSE MARINHO DOS SANTOS (RJ087465) E OUTROS |
REMETENTE | : | JUIZO FEDERAL DA 3A VARA DE NITEROI-RJ |
ORIGEM | : | TERCEIRA VARA FEDERAL DE NITERÓI (200751020038177) |
RELATÓRIO
Trata-se de Remessa Necessária e Apelação Cível, oposta pela Parte Ré – União Federal –, contra a Sentença de fls. 363/372, que julgou procedente em parte a pretensão autoral.
Insurgiu-se a Parte Autora, ora Apelada, em síntese, contra a cobrança de Taxa de Ocupação, expondo ser senhora e possuidora do imóvel objeto da taxação, uma vez que não se trata o mesmo de terreno de marinha. Requer, portanto, o reconhecimento da propriedade plena, oponível com eficácia erga omnes.
Contra a Sentença de procedência parcial, opôs a União Federal a Apelação de fls. 383/393, onde pugna pela reforma da Sentença recorrida.
Contrarrazões às fls. 396/406.
É o Relatório.
Reis Friede
Relator
VOTO CONDUTOR
Reporto-me, como razões de decidir, às notas taquigráficas juntadas às fls. 421/441, dos presentes autos.
SALETE MARIA POLITA MACCALÓZ
Desembargadora Federal
VOTO
O Senhor Desembargador Federal Reis Friede (Relator):
Aduz a Parte Autora ser senhora e possuidora do imóvel descrito na peça vestibular, com domínio pleno, conforme escritura registrada no Registro Geral de Imóveis e, por este motivo, não poderia a União Federal, ignorando a aludido título, lançar a impugnada taxa de ocupação como se o imóvel fosse bem público dominical.
A previsão constitucional do direito de propriedade da UNIÃO encontra previsão no art. 20 da CRFB/88, que assim dispõe:
“Art. 20. São bens da União:
I - os que atualmente lhe pertencem e os que lhe vierem a ser atribuídos;
II - as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei;
III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais;
IV - as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de Municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26, II. “
Por sua vez, o Decreto-Lei 9.760⁄46 versa sobre o enquadramento legal para a caracterização dos terrenos de marinha, dispondo, verbis:
“Art. 1º Incluem-se entre os bens imóveis da União:
a) os terrenos de marinha e seus acréscidos ;
(...)
Art. 2º São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831:
a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés;
b) os que contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência das marés.
Parágrafo único. Para os efeitos dêste artigo a influência das marés é caracterizada pela oscilação periódica de 5 (cinco) centímetros pelo menos, do nível das águas, que ocorra em qualquer época do ano.
Art. 3º São terrenos acrescidos de marinha os que se tiverem formado, natural ou artificialmente, para o lado do mar ou dos rios e lagoas, em seguimento aos terrenos de marinha.”
Desta feita, o título particular é inoponível quanto à União Federal nas hipóteses em que os imóveis situam-se em terrenos de marinha, revelando o domínio da União Federal sobre os mesmos.
In casu, informações fornecidas pela GRPUES – informações estas, frise-se, dotadas de presunção de veracidade – atestam que os Apelados ocupam terreno de marinha, devidamente demarcado e identificado, cujos limites foram traçados e aprovados por procedimento realizado de acordo com os critérios da legislação de regência. Não logrou êxito a Parte Autora, outrossim, em elidir tal presunção.
Depreende-se, portanto, que o título de propriedade no qual se funda a pretensão da Parte Autora não poderia ter sido sequer emitido, uma vez que tal ato foi praticado à revelia daquela que detém o verdadeiro domínio.
Neste sentido, o art. 198 do Decreto-Lei 9.760⁄46, in verbis:
“Art. 198. A União tem por insubsistentes e nulas quaisquer pretensões sobre o domínio pleno de terrenos de marinha e seus acrescidos, salvo quando originais em títulos por ela outorgadas na forma do presente Decreto-lei.”
Destarte, sendo assente o direito da União Federal quanto aos terrenos de marinha, o título de propriedade trazido à lume não pode subsistir.
Neste sentido, a doutrina:
Os TERRENOS DE MARINHA são BENS DA UNIÃO, de forma ORIGINÁRIA. Significando dizer que a faixa dos TERRENOS DE MARINHA nunca esteve na propriedade de terceiros, pois, desde a criação da União, ditos TERRENOS, já eram de sua propriedade, independentemente de estarem ou não demarcados.
A existência dos TERRENOS DE MARINHA, antes mesmo da Demarcação, decorre da ficção jurídica resultante da lei que os criou. Embora sem definição corpórea , no plano abstrato, os TERRENOS DE MARINHA existem desde a criação do estado Brasileiro, uma vez que eles nasceram legalmente no Brasil-Colônia e foram incorporados pelo Brasil-Império. (in Revista de Estudos Jurídicos, Terrenos de Marinha, Eliseu Lemos Padilha, Vol. 20, pág. 38)
Os terrenos de marinha são bens públicos, pertencentes à União, a teor da redação incontroversa do inciso VII do artigo 20 da Constituição Federal. E isso não é novidade alguma, dado que os terrenos de marinha são considerados bens públicos desde o período colonial, conforme retrata a Ordem Régia de 4 de dezembro de 1710, cujo teor desta última apregoava "que as sesmarias nunca deveriam compreender a marinha que sempre deve estar desimpedida para qualquer incidente do meu serviço, e de defensa da terra."
Vê-se, desde períodos remotos da história nacional, que os terrenos de marinha sempre foram relacionados à defesa do território. A intenção era deixar desimpedida a faixa de terra próxima da costa, para nela realizar movimentos militares, instalar equipamentos de guerra, etc. Por essa razão, em princípio, é que os terrenos de marinha são bens públicos e, ademais, pertencentes à União, na medida em que é dela a competência para promover a defesa nacional (inciso III do artigo 21 da Constituição Federal). (in Direito Público, Estudos em Homenagem ao Professor Adilson Abreu Dallari, Terrenos de Marinha: aspectos destacados, Joel de Menezes Niebuhr, Ed. Delrey, pág. 354)
“O Direito da União aos terrenos de marinha decorre, não só implicitamente, das disposições constitucionais vigentes, por motivos que interessam à defesa nacional, à vigilância da costa, à construção e exploração dos portos, mas ainda de princípios imemoriais que só poderiam ser revogados por cláusula expressa da própria Constituição. (in Tratado de Direito Administrativo, Themistocles Brandão Cavalcanti, Ed Livraria Freitas Bastos, 2ª Edição; pág. 110)
Revela-se, assim, incabível a pretensão da Parte Autora, no sentido de fazer prevalecer o título expedido pelo competente RGI quanto ao direito da União Federal à propriedade dos terrenos de marinha.
Ademais, não se verifica burla ao contraditório e à ampla defesa, quando da demarcação da área em testilha. E isto porque, consoante se verifica dos autos, foram publicados editais para convocação dos interessados para fins de impugnação da demarcação. Dessa maneira, a demarcação passa a gozar de todos os atributos inerentes aos atos administrativos, quais sejam, presunção de legitimidade, imperatividade, exibilidade e executoriedade.
Registre-se, também, que a possibilidade de intimação dos interessados via edital é autorizada por lei. Neste sentido, o art. 11 do Decreto-lei n.º 9.760/46, in verbis:
“Art. 11. Para a realização do trabalho, o SPU convidará os interessados, certos e incertos, pessoalmente ou por edital, para que no prazo de 60 (sessenta) dias ofereçam a estudo, se assim lhes convier, plantas, documentos e outros esclarecimentos concernentes aos terrenos compreendidos no trecho demarcando”
Corroboram todo o expendido os arestos abaixo transcritos:
“ADMINISTRATIVO – TERRENOS DE MARINHA E ACRESCIDOS – ÁREA DO ANTIGO "BRAÇO MORTO" DO RIO TRAMANDAÍ – IMÓVEIS DE PROPRIEDADE DA UNIÃO AFORADOS POR MUNICÍPIO A PARTICULARES – DECRETO-LEI 9.760⁄46 – EFEITOS DO PROCEDIMENTO DE DEMARCAÇÃO SOBRE TÍTULOS DE PROPRIEDADE E DE AFORAMENTO REGISTRADOS – TAXA DE OCUPAÇÃO – MEDIDA CAUTELAR.
1. Aplicação parcial da Súmula 283⁄STF porque inatacado o fundamento do acórdão recorrido no sentido de que a impugnação ao procedimento de demarcação, inclusive quanto à delimitação da posição da linha do preamar de 1831, encontra-se acobertado pela prescrição.
2. Impossibilidade de reexame do contexto fático-probatório referente à assertiva de estarem os imóveis localizados dentro das áreas de propriedade da União, por força da Súmula 7⁄STJ.
3. Deficiente a fundamentação do recurso especial na parte em que suscita vício de julgamento no acórdão de origem, tendo aplicabilidade o teor da Súmula 284⁄STF.
4. Conflito aparente entre as normas do Decreto-lei 9.760⁄46, do Código Civil Brasileiro de 1916 e da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015⁄73) que se resolve pela aplicação da regra do art. 2º, § 2º, da LICC.
5. Os terrenos de marinha, cuja origem que remonta à época do Brasil-Colônia, são bens públicos dominicais de propriedade da União e estão previstos no Decreto-lei 9.760⁄46.
6. O procedimento de demarcação dos terrenos de marinha produz efeito meramente declaratório da propriedade da União sobre as áreas demarcadas.
7. Em relação ao direito de propriedade, tanto o Código Civil Brasileiro de 1916 como o novo Código de 2002 adotaram o sistema da presunção relativa (juris tantum) relativamente ao domínio, admitindo prova em contrário.
8. Não tem validade qualquer título de propriedade outorgado a particular de bem imóvel situado em área considerada como terreno de marinha ou acrescido.
9. Desnecessidade de ajuizamento de ação própria, pela União, para a anulação dos registros de propriedade dos ocupantes de terrenos de marinha, em razão de o procedimento administrativo de demarcação gozar dos atributos comuns a todos os atos administrativos: presunção de legitimidade, imperatividade, exigibilidade e executoriedade.
11. Legitimidade da cobrança de taxa de ocupação pela União mesmo em relação aos ocupantes sem título por ela outorgado.
12. Ausência de fumus boni juris.
13. Recurso especial parcialmente conhecido e, no mérito, improvido. (REsp 624.746 - RS, Relatora Ministra ELIANA CALMON, Segunda Turma, DJ de 30 de outubro de 2005)
ADMINISTRATIVO. TERRENO DE MARINHA. TAXA DE OCUPAÇÃO.
1. Os terrenos de marinha, discriminados pelo Serviço de Patrimônio da União, com base em legislação específica, só podem ser descaracterizados pelo particular por meio de ação judicial própria.
2. Cobrança de taxa de ocupação pela União.
3. Ação de nulidade da exigência do pagamento da taxa sob alegação dos autores de serem proprietários do bem imóvel, em face de doação feita pelo Estado do Rio Grande do Sul.
4. Reconhecimento pelo acórdão de que os bens estão situados em faixa considerada de terreno de marinha.
5. Impossibilidade, em face do posicionamento do acórdão, de ser revertido esse convencimento. Matéria de prova.
6. Em nosso direito positivo, diferentemente do sistema alemão, a transcrição do título no registro de imóvel tem presunção "juris tantum".
7. É sem qualquer validade título de propriedade outorgado a particular de bem imóvel situado em área considerada como terreno de marinha.
8. Taxa de ocupação devida.
9. Recurso especial improvido. (REsp 409.303 - RS, Relator Ministro JOSÉ DELGADO, Primeira Turma, DJ de 14 de outubro de 2002)”
Diante do exposto, dou provimento à Remessa Necessária e ao Apelo da União Federal para julgar improcedente in totum a pretensão autoral.
Honorários advocatícios, pela Parte Autora, em R$ 200,00 (duzentos reais), na forma do art. 20, § 4º, do CPC.
É como voto.
Reis Friede
Relator
EMENTA
ADMINISTRATIVO. TERRENO DE MARINHA. TAXA DE OCUPAÇÃO. TÍTULOS DE DOMÍNIO PLENO. NEGATIVA DE VALIDADE E EFICÁCIA. IMPOSSIBILIDADE SENÃO MEDIANTE ANULAÇÃO POR DECISÃO JUDICIAL.
1.As autoras são legitimas possuidoras de título de domínio pleno, cuja desconsideração só se admite à vista de anulação por decisão judicial.É que a escritura pública faz prova plena, como preceitua o § 1º, do artigo 134 do Código Civil de 1916 (art.215 do CC de 2002), e uma vez inscrita no registro de imóveis, estabelece, em favor do adquirente, a presunção de titularidade do direito real (CC de 1916, artigo 859).
2.A União não pode, por simples ato administrativo, com apoio em disposições de Decreto-Lei 9.760/46 que, em princípio, conflitam com a lei dos registros públicos (que é norma específica), negar validade e eficácia a títulos de domínio das autoras, atributos estes que só poderão ser afastados por decisão judicial que os declare nulos ou inexistentes. Enquanto isso não ocorre, milita em favor delas a presunção iuris tantum de validade dos referidos títulos.
3.Inatendidas as disposições dos artigos 11 e 61§§ 1º e 2º, do Decreto-lei nº 9.760, têm-se por inobservadas as exigências do devido processo legal, notadamente o direito ao contraditório e à ampla defesa assegurados na Carta Magna.
4.Não devem prevalecer as anotações existentes no cartório do 16º Ofício de Niterói, com relação ao procedimento demarcatório, estabelecendo-se a propriedade plena da parte autora.
5.Recurso de apelação e remessa improvidos, por maioria, vencido o Relator.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas: Decidem os membros da 7ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, por maioria, negar provimento ao recurso e à remessa necessária, na forma do voto da Desembargadora Federal Salete Maria Polita Maccalóz.
Rio de Janeiro, ____ de _________________ de 2009 (data do julgamento).
SALETE MARIA POLITA MACCALÓZ
Desembargadora Federal
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